terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Oitenta e três por cento de bons!

Oitenta e três por cento de bons!
Uma mistificação de que todos somos culpados.


Há cerca de uma semana soubemos, pela Ministra da Educação, que tinha sido dada a nota de “bom” a 83 por cento dos professores do ensino público. Como nas notícias que li, sobre as negociações do ME com os sindicato, foram apenas referidas as notas de “bom”, “muito bom” e “excelente”, julgo poder presumir que os outros professores, incluídos nos restantes 17 por cento do conjunto, foram classificados com “muito bom” ou “excelente” e que não houve docentes, pelo menos em número minimamente significativo, com nota inferior a “bom”.

Instado sobre esta matéria, o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa disse acreditar nos 83 por cento de bons, isto é, na real existência de uma esmagadora maioria de professores ao nível de pelo menos “bom”. Eu não acredito que ele acredite no que afirmou e tomei a sua resposta, perante as câmaras da RTP 1, como uma forma de fugir à discussão do assunto.

Ora toda a gente sabe que nem os professores nem os funcionários públicos em geral (entre os quais, segundo alguns, a classificação de “bom” impera) são ou podem ser quase todos bons ou mais do que bons. Por outro lado, não houve qualquer campanha sistemática de criterioso recrutamento e apuramento, no caso dos professores, que pudesse ter levado àquele resultado espectacular. Estaremos, portanto, perante números enganadores.

Alguns dirão que o facto não é muito grave porque se tem apenas um deslocamento da escala, esclarecendo que, se entendermos “bom” como “suficiente” ou “apto”, muito “bom” como simples “bom” e “excelente” como “muito bom”, as coisas já se ajustam.

Contudo, este entendimento não me parece admissível por três importantes razões.

Em primeiro lugar, porque não faz sentido que sejam aceites, e muito menos por parte do Ministério da Educação, significados para as palavras que não lhes pertencem, quando existem termos ou significantes perfeitamente adequados para os significados em causa. Por exemplo, quem satisfaz medianamente as suas funções e que, na classificação nominal tradicional, teria um “suficiente”, não pode nem deve ter um “bom”. Admitir a confusão dos termos é permitir ambiguidades, abrir a porta à desordem e ao oportunismo.

Em segundo lugar, o logro não estará apenas no deslocamento da escala mas também no número prático de degraus considerado. Onde se estabelece uma diferença entre “muito bom” e “excelente” não se compreende que todo o resto possa ficar indiferenciado dentro do “bom”. Há com certeza mais degraus na classificação do ME que ficaram por utilizar. Talvez por se querer evitar afrontar e/ou traumatizar pessoas com notas menos agradáveis, empastelou-se o sistema em apenas três escalões. Mas, com três categorias, a do meio deveria ser a mais cheia e não é. Ou seja, cometeu-se um erro e deu-se lugar a outro.

Em terceiro lugar, um sistema ambíguo e empastelado é não só lesivo dos contribuintes, por alimentar ineficiência dissipadora de recursos, como também é injusto e anti-estimulante para os que se dedicam à profissão e a desempenham de maneira meritória. (Como a experiência tem comprovado, o mérito reconhecido aos que não o têm raramente incentiva estes e desmotiva os melhores, levando a um abaixamento do rendimento geral).

Voltando à primeira razão apresentada gostaria de referir o seguinte. Se alguém me dissesse, em abstracto, que um funcionário com nota habitual de “bom” deveria ter acesso ao topo da carreira, eu concordaria de imediato. Mas discordaria se o “bom” quisesse dizer “mediano”. Onde quero chegar? Julgo que temos razões para desconfiar de que a falsa classificação de “bom” poderá ser ou ter sido, uma ou outra vez, utilizada com se fosse verdadeira.

O mal é dos professores? Acho que não, julgo que o mal é de todos nós, nomeadamente da maneira como nos deixámos ficar reféns de ideias igualitárias e das correspondentes práticas lesivas da boa rendibilidade dos grupos.

Lembro, a propósito, um exemplo que reputo de bastante significativo.

Os que viveram os anos de 1974 e 75 recordam-se muito bem da justíssima palavra de ordem que dizia “para trabalho igual salário igual”. Ela foi repetida vezes sem conta. Em todo o caso, no Estado e em empresas públicas, por perverso oportunismo de partidos e de direcções sindicais, por comodismo de políticos, juízes e gestores, por difusas ideias igualitárias, essa justa palavra de ordem rapidamente se transformou numa outra sentença nunca pronunciada. Assim, como se pode provar, “para trabalho igual salário igual” passou a significar, na prática e inúmeras vezes, “para denominação de funções igual ou descritivo de funções igual salário igual, pouco importando o nível de desempenho”.

Deixámos que se baralhassem as coisas, ainda que não raro com piedosas intenções. Estamos a pagar a factura.

Mas não podemos desistir. Há que combater o facilitismo, a mistificação instalada, o oportunismo.

Pedro Faria

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Como atacar os maiores problemas de momento-5


Sobre a Justiça em Portugal (3.ª parte)


Nos dois apontamentos anteriores, procurei detectar os problemas mais importantes da Justiça e enunciar algumas vias de solução, colocando-me no ponto de vista de um cidadão comum e que se encontra fora do aparelho judiciário.

Faltou, em todo o caso, precisar um pouco melhor as consequências gerais da nossa ineficiência judicial, cujos efeitos mais directos, embora não imediatamente perceptíveis, talvez sejam os importantes estragos que provoca na coesão social democrática e na economia.



Consequências nefastas sobre a coesão social e a democracia

Numa sociedade onde abundam pessoas que impunemente não cumprem a lei, onde significativo número recorre com sucesso a habilidades de fuga ao fisco; tira descarado proveito da lentidão judicial para não pagar dívidas; aliena manhosamente património para não devolver o que indevidamente sacou; desrespeita contratos sem ser penalizado ou, por empenhos e prejuízo da maioria, consegue eliminar concorrentes, numa sociedade assim, onde os cidadãos podem constatar que o chamado Estado de Direito está longe de se realizar, porque tudo isto acontece sem que os Tribunais e demais órgãos de soberania consigam dar uma resposta minimamente satisfatória a tanto incumprimento, o espírito gregário é minado por uma tentação no sentido do salve-se quem puder, o que se compreende face a uma organização demasiado iníqua e particularmente injusta para quem queira ter uma vida honesta.

Em tais circunstâncias, que para nossa infelicidade são reais, a coesão social é gravemente afectada e a democracia é ameaçada.

Considero por isso tendencialmente criminoso o comportamento displicente, arrogante e evasivo dos agentes de justiça e dos políticos portugueses mais altamente colocados, que fingem não ver e mostram não querer considerar este seriíssimo problema.


Efeitos nefastos sobre a economia

Por outro lado, é matéria assente, entre economistas e analistas políticos, que não é possível estabelecer uma economia sã e sustentável sem um Estado de Direito. E vê-se bem porquê.

Nas suas relações económicas e financeiras os indivíduos e as empresas baseiam-se em contratos. Numa sociedade onde os acordos sejam amiúde desrespeitados sem consequências para os prevaricadores, instala-se a desconfiança entre os agentes económicos e deixa de haver condições para desenvolver um trabalho proveitoso. Se for muito difícil cobrar dívidas, as firmas mais pequenas passam por grandes dificuldades ou soçobram. E as mais fortes tendem a tomar medidas defensivas em relação a todos os clientes, com prejuízos para a maioria destes. Se há empresas que reiteradamente conseguem deixar de pagar os impostos ou as contribuições para a segurança social, as que cumprem são, desde logo, lesadas na sua capacidade concorrencial e vêem-se obrigadas a retrair-se, a degenerar ou procurar outras paragens. Se a corrupção é significativa, também a leal concorrência e a confiança dentro do sistema económico saem abaladas.

Quer dizer, onde a Justiça se mostra muito pouco eficiente para travar estas coisas, a economia ressente-se e vai abaixo, passa para um nível, digamos, subdesenvolvido, isto é, para um nível de menor qualidade e maior precariedade no que toca a todos os bens, sejam eles mais ou menos essenciais.

Ora, encontrando-se a Justiça portuguesa no estágio de ineficiência referido imediatamente atrás, as melhores reformas económicas que forem lançadas no nosso país estarão sempre votadas a enfrentar grandes dificuldades por razões extra-económicas.

Então, tal como o afirmou Henrique Raposo, em artigo no Expresso de 24-12-2009, versando igualmente sobre este tema, bem se pode dizer que, em Portugal, “a reforma económica mais urgente é, paradoxalmente, a reforma da Justiça”.
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