Oitenta e três por cento de bons!
Uma mistificação de que todos somos culpados.
Há cerca de uma semana soubemos, pela Ministra da Educação, que tinha sido dada a nota de “bom” a 83 por cento dos professores do ensino público. Como nas notícias que li, sobre as negociações do ME com os sindicato, foram apenas referidas as notas de “bom”, “muito bom” e “excelente”, julgo poder presumir que os outros professores, incluídos nos restantes 17 por cento do conjunto, foram classificados com “muito bom” ou “excelente” e que não houve docentes, pelo menos em número minimamente significativo, com nota inferior a “bom”.
Instado sobre esta matéria, o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa disse acreditar nos 83 por cento de bons, isto é, na real existência de uma esmagadora maioria de professores ao nível de pelo menos “bom”. Eu não acredito que ele acredite no que afirmou e tomei a sua resposta, perante as câmaras da RTP 1, como uma forma de fugir à discussão do assunto.
Ora toda a gente sabe que nem os professores nem os funcionários públicos em geral (entre os quais, segundo alguns, a classificação de “bom” impera) são ou podem ser quase todos bons ou mais do que bons. Por outro lado, não houve qualquer campanha sistemática de criterioso recrutamento e apuramento, no caso dos professores, que pudesse ter levado àquele resultado espectacular. Estaremos, portanto, perante números enganadores.
Alguns dirão que o facto não é muito grave porque se tem apenas um deslocamento da escala, esclarecendo que, se entendermos “bom” como “suficiente” ou “apto”, muito “bom” como simples “bom” e “excelente” como “muito bom”, as coisas já se ajustam.
Contudo, este entendimento não me parece admissível por três importantes razões.
Em primeiro lugar, porque não faz sentido que sejam aceites, e muito menos por parte do Ministério da Educação, significados para as palavras que não lhes pertencem, quando existem termos ou significantes perfeitamente adequados para os significados em causa. Por exemplo, quem satisfaz medianamente as suas funções e que, na classificação nominal tradicional, teria um “suficiente”, não pode nem deve ter um “bom”. Admitir a confusão dos termos é permitir ambiguidades, abrir a porta à desordem e ao oportunismo.
Em segundo lugar, o logro não estará apenas no deslocamento da escala mas também no número prático de degraus considerado. Onde se estabelece uma diferença entre “muito bom” e “excelente” não se compreende que todo o resto possa ficar indiferenciado dentro do “bom”. Há com certeza mais degraus na classificação do ME que ficaram por utilizar. Talvez por se querer evitar afrontar e/ou traumatizar pessoas com notas menos agradáveis, empastelou-se o sistema em apenas três escalões. Mas, com três categorias, a do meio deveria ser a mais cheia e não é. Ou seja, cometeu-se um erro e deu-se lugar a outro.
Em terceiro lugar, um sistema ambíguo e empastelado é não só lesivo dos contribuintes, por alimentar ineficiência dissipadora de recursos, como também é injusto e anti-estimulante para os que se dedicam à profissão e a desempenham de maneira meritória. (Como a experiência tem comprovado, o mérito reconhecido aos que não o têm raramente incentiva estes e desmotiva os melhores, levando a um abaixamento do rendimento geral).
Voltando à primeira razão apresentada gostaria de referir o seguinte. Se alguém me dissesse, em abstracto, que um funcionário com nota habitual de “bom” deveria ter acesso ao topo da carreira, eu concordaria de imediato. Mas discordaria se o “bom” quisesse dizer “mediano”. Onde quero chegar? Julgo que temos razões para desconfiar de que a falsa classificação de “bom” poderá ser ou ter sido, uma ou outra vez, utilizada com se fosse verdadeira.
O mal é dos professores? Acho que não, julgo que o mal é de todos nós, nomeadamente da maneira como nos deixámos ficar reféns de ideias igualitárias e das correspondentes práticas lesivas da boa rendibilidade dos grupos.
Lembro, a propósito, um exemplo que reputo de bastante significativo.
Os que viveram os anos de 1974 e 75 recordam-se muito bem da justíssima palavra de ordem que dizia “para trabalho igual salário igual”. Ela foi repetida vezes sem conta. Em todo o caso, no Estado e em empresas públicas, por perverso oportunismo de partidos e de direcções sindicais, por comodismo de políticos, juízes e gestores, por difusas ideias igualitárias, essa justa palavra de ordem rapidamente se transformou numa outra sentença nunca pronunciada. Assim, como se pode provar, “para trabalho igual salário igual” passou a significar, na prática e inúmeras vezes, “para denominação de funções igual ou descritivo de funções igual salário igual, pouco importando o nível de desempenho”.
Deixámos que se baralhassem as coisas, ainda que não raro com piedosas intenções. Estamos a pagar a factura.
Mas não podemos desistir. Há que combater o facilitismo, a mistificação instalada, o oportunismo.
Pedro Faria