quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Como atacar os maiores problemas de momento-3

Sobre a Justiça em Portugal (1.ª parte)

Ponto de vista deste comentário

A visão que desejo apresentar da Justiça em Portugal é a correspondente à de um cidadão comum, com poucos contactos directos com órgãos ligados à Justiça, mas que se sente, como tantos outros, directa e indirectamente vítima da sua elevada inoperância e desajuste.

O que vamos entender como Justiça

Convém esclarecer, desde já, o que iremos englobar sob esta designação.
Em primeiro lugar, há que referir a administração da justiça levada a efeito pelo órgão de soberania denominado “Tribunais”. Aí se incluem os tribunais judiciais (de primeira, segunda instância e supremo), os tribunais administrativos e fiscais, o Tribunal de Contas, tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz, bem como o Ministério Público, ao qual pertence a Procuradoria-Geral da República. Juntemos a este grupo o Tribunal Constitucional, embora a nossa lei fundamental não o considere sob o título de “Tribunais”.

A ideia mais abrangente que temos de Justiça não se confina, em todo o caso, aos órgãos atrás mencionados. Há que acrescentar a Polícia Judiciária e não esquecer, sob outro ponto de vista, o próprio corpo de leis pelo qual os órgãos judiciais se têm de reger, assim como o patrocínio forense assegurado pelos advogados e o Observatório Permanente de Justiça. Deste modo, não vamos pôr de lado as importantes contribuições para o estado da Justiça em Portugal da rsponsabilidade da Assembleia da República, do Governo, dos advogados e das escolas onde se ensina direito, jurisprudência e sociologia.

Lentidão e inoperância
Justiça forte com os mais fracos e fraca com os mais fortes

As mais visíveis pechas da justiça portuguesa são, talvez, a lentidão e a inoperância.
Os cidadãos verificam que, em geral, os casos que envolvem pessoas e instituições com algum poder demoram muitos anos a serem resolvidos ou acabam por não ter resolução satisfatória, seja por via de uma dissolução em pormenores formais que obscurecem e até anulam o essencial, seja por causa de provas mal estabelecidas e/ou devido a incompreensíveis prescrições. As vítimas não são compensadas em tempo útil e os faltosos não só escapam à devida punição como, não raro, exibem com despudor a esperteza que os fez escapar à lei. E, como sabemos, quando a Justiça não funciona todos são prejudicados, sobretudo os que trabalham e pagam os seus impostos.

Casos como os da Operação Furacão, Freeport, Sobreiros, Casa Pia, Submarinos ou edifício dos CTT de Coimbra, que já têm anos, dão iniludível consistência à ideia generalizada de serem questões que nunca serão resolvidas ou que, quando muito, serão encerradas sem se conseguir responsabilizar devidamente quem cometeu os actos susceptíveis de condenação. A esperança de solução para os casos mais recentes do BPN, BPP e Face Oculta não é maior. (Por que será que, nos Estados Unidos, uma ocorrência semelhante à do BPN foi solucionada em cerca de seis meses?). Outro aspecto da lentidão que os mais poderosos conseguem impor é a que se verifica nalguns processos de indemnização, em que até decisões, inteiramente favoráveis aos requerentes, só aparecem dez ou mais anos sobre os acontecimentos, quando as reparações já perderam sentido!

Mesmo que não estejam envolvidos poderosos, o cidadão comum tem a impressão, assente em inúmeros relatos, de que bastará uma das partes ter mais um pouco de poder para que possa ser embaraçado o justo andamento de um caso, o que entronca naquilo que o actual Bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. Marinho Pinto, sintetizou com a afirmação de que a nossa Justiça é forte com os fracos e fraca com os fortes.

A Justiça não se mostra capaz de uma auto-reforma e está inquinada

Por que motivo isto se passa assim? Por que será que, em dezenas de anos, os diversos agentes envolvidos na Justiça não conseguiram solucionar pelo menos alguns dos problemas de fundo?
As causas serão muitas, mas é evidente que a Justiça Portuguesa não tem sido capaz de se auto-reformar, uma vez que, face às prementes necessidades colocadas durante dezenas de anos, não deu sinais de o conseguir fazer.

Sendo muitos os agentes de Justiça que podemos admirar pelo seu saber, probidade e dedicação, a verdade é que vemos os diversos subconjuntos do sistema enleados mais em interesses de grupo, em habilidades jurídicas ou académicas, em vaidades e questões políticas, do que numa efectiva contribuição para a boa administração da justiça.

Deste inegável e triste panorama inferimos, portanto, que os diversos órgãos da Justiça se encontram submetidos a agentes menos dignos e/ou reféns de interesses corporativos, político-partidários ou económicos. Para além disso estarão ainda presos a concepções erróneas sobre a finalidade da administração da justiça.

Um caso bem conhecido de inquinação

Um exemplo claro da submissão a agentes menos dignos é o do Ministério Público. As frequentes e impunes violações do segredo de justiça sobre as quais não se descortinam outros propósitos que não sejam os (i) de difamar suspeitos ou (ii) de pôr em cheque organizações a que eles pertençam ou (iii) de lançar confusões que desacreditem a própria investigação (a fim de safar efectivos malfeitores) ou que tenham como objectivo (iv) contrariar qualquer das acções anteriores ou, ainda, (v) impedir, em desespero, que importantes processos morram à nascença, essas violações, dizíamos, mostram-nos, por uma razão ou por outra, que o Ministério Público está seriamente inquinado.

Mais, as fugas para os meios de comunicação indiciam outras e secretas fugas particulares, por exemplo, para dar tempo a alguns suspeitos, nomeadamente os mais poderosos, de eliminar provas comprometedoras.

Não seria mau, para começar, que o Conselho Superior do Ministério Público se submetesse, de forma expressa, a um código de ética, do tipo referido em post anterior, para dele tirar, de cima até baixo, as necessárias consequências. Não estão em causa os que já cumpram normas do género mencionado, mas sim aqueles que, lá dentro e para descrédito do Ministério Público, delas se riem.

Será talvez de rever, desde já, o quadro em que se insere o grande poder dos magistrados, o qual, devendo contribuir para uma geral, desenvolta e independente resolução dos processos, não parece estar a orientar-se nesse sentido.

As condições em que se aplica o segredo de justiça também serão de discutir, tendo em conta que ele não deverá ser instrumento de secreto abafo de casos incómodos, de cobertura de atrasos injustificáveis ou de interesses de violação.

Os sindicatos de magistrados e juízes não parecem ter razão de ser

O sindicalismo na Justiça, estendido a magistrados e juízes, contrariamente aos sinceros desejos de alguns, não ajudou a dignificar o sistema nem contribuiu para a sua independência. De acordo com o que se percebe, tal sindicalismo, inserido num órgão de soberania, serviu, sobretudo, para assegurar remunerações, reformas e regalias sociais, das mais elevadas da nossa sociedade, aos juízes e magistrados. Ora, isso não seria genericamente criticável se a Justiça funcionasse de maneira minimamente satisfatória e se não continuássemos a ver as respectivas organizações socioprofissionais envolvidas em disputas de poder ou de liderança, apegadas, acima de tudo, à protecção acrítica dos seus associados bem como à obtenção de direitos, preitos e benesses, alheadas do estado deplorável da própria Justiça, salvo piedosas e pouco consequentes declarações.

Os cidadãos têm dificuldade em entender um poder constitucional – pois os juízes e magistrados são membros, com estatutos especiais, de um órgão de soberania – cujos representantes se comportam, através das suas organizações socioprofissionais, como se fossem empregados dos outros órgãos de soberania. E vêm na correspondente actividade reivindicativa uma porta que se abriu à entrada de interesses político-partidários na Justiça, já que a negociação de benesses e contrapartidas dos diferentes grupos judiciais passou pela apreciação e disputa dos partidos ligados ao Governo e representados na Assembleia da República, os quais, naturalmente, não terão deixado de aproveitar a oportunidade que se lhes ofereceu de ganhar ou reforçar posições nas associações sindicais dos juízes e magistrados. Estas e a Justiça, conforme os sinais indiciam, foram arrastadas, de maneira mais ou menos sub-reptícia, para a luta política.

A interferência dos partidos nas associações sindicais de juízes e magistrados é uma questão de fundo porque abala a autonomia da Justiça. Os tribunais têm de ser independentes, sujeitos apenas à lei, sob pena da sua função perder sentido. Se os seus principais agentes se organizam em associações cujo sucesso reivindicativo se liga a interesses de grupos políticos, a independência fica em perigo. E a independência, outorgada aos tribunais pelo povo português, deve ser tratada como coisa inalienável pelos agentes da Justiça. Malbaratá-la ou torpedeá-la é algo de muito grave.

Conclui-se que o sindicalismo na Justiça, no que respeita a magistrados e juízes, não é recomendável e deverá, talvez, desaparecer. Não faltarão dispositivos e processos dignos, fora do movimento sindical, para tratar das questões relativas às suas carreiras, remunerações, pensões e regalias sociais. E não faltarão também mecanismos não sindicais de discussão da eficiência da Justiça, que permitam aos magistrados e aos juízes darem relevantes contributos para a melhoria da bastante desacreditada máquina judicial.

(Continua)

Títulos dos pontos da segunda parte deste post:

É necessário dispor de melhor legislação
À pala da nossa protecção, vemos serem protegidos os que nos ludibriam
O vício conceptual de deixar prevalecer o menos importante sobre o essencial
O papel, nem sempre positivo, dos advogados
O papel, nem sempre positivo, dos outros órgãos de soberania

5 comentários:

A. João Soares disse...

Caro Amigo Pedro Faria

Parabéns por mais esta peça do seu trabalho. Continua no mesmo estilo sério, pormenorizado e que procura um rigor muito louvável. Parece uma uma tese universitária muito acima de uma qualquer «nova oportunidade». Já difundi pelos meus correspondentes de e-mail, pois bem merece ser divulgado. Espero que venham e comentem, se bem que pouco há a dizer além de felicitar o autor.

Um abraço
João

Beezzblogger disse...

Boa tarde. Concordo em quase tudo o que aqui foi dito pelo meu amigo, e afirmo uma vez mais, como apanágio habitual, que estes assuntos não resolverão nunca, sem uma forte vontade política e mobilização de toda uma sociedade, que se dedicou à muitos anos ao factor "C". Enraizado na nossa sociedade de um modo geral.

Abraços, e obrigado pelo seu olha lúcido que nos mostra bem o actual estado do País e a sua maior maleita, a Justiça.


@Carlos Rocha
Beezz
http://beezzblogger.wordpress.com

Luis disse...

Caro Amigo Pedro Faria,
Já tinha lido este texto com o qual concordo inteiramente mas obriguei-me a le-lo de novo para melhor apreciar a parte dois deste capítulo. Quando o comentar terei em consideração o que aqui foi dito.
Um abraço muito amigo.

Luis disse...

Meu Bom Amigo,
Desejos de um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo para si e Familia

Pedro Faria disse...

Meu caro Luís:
Agradeço e desejo também, tanto a si como a todos os seus, um Natal Muito Feliz e um Excelente Ano Novo.
Pedro Faria